quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Histórias íntimas

(Capa da obra)
O livro Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil é uma obra produzida pela renomada historiadora brasileira Mary Del Priore. A autora é conhecida por se preocupar com novas abordagens historiográficas partindo dos pequenos acontecimentos para enfatizar assuntos inéditos. Nesse livro ela percorre a intimidade dos lares brasileiros revelando detalhes curiosos acerca da vida a dois no país. Confira um pequeno resumo:

Da colônia ao império

Quando o Brasil ainda ocupava o posto de colônia portuguesa a situação das casas era precária. Os lares não ofereciam qualquer tipo de privacidade uma vez que nem as portas dos mais ricos possuíam fechaduras.  Nosso país era muito atrasado em relação a Portugal. Das boas maneiras europeias a única que era respeitada aqui nos trópicos era a proibição de andar nu, tanto dentro quanto fora de casa.

Nessa época (idade moderna) a igreja católica proibiu as pessoas de tomarem banho nuas. Tanto homens quanto mulheres precisavam se banhar com os calções e camisolas que usavam como roupa de baixo. Já os religiosos foram definitivamente proibidos de lavar seus corpos através do Código Justiniano. Por causa dessa decisão o batismo foi alterado. Antes todo o corpo era imerso em água, essa prática foi trocada pela benção somente na testa como é feita até hoje.

Imagine o cheiro desses corpos mal limpos. A higiene praticamente não existia no Brasil até o século XIX. Algumas mulheres gostavam de passar almíscar nas partes íntimas afim de evitar o mal cheiro, mas os homens reclamavam. Pediam para elas deixarem sujo antes da relação sexual, se sentiam mais atraídos dessa maneira. No século XVIII várias mulheres pediram divórcio por não suportarem o odor.

Pra piorar a situação os penicos passavam a semana inteira sendo carregados dentro do quarto mal varrido e sem janelas. O único conforto vinha das substâncias odoríferas que eram queimadas pela casa para espantar os mosquitos e o cheiro ruim. Nessas condições até os casais mais ricos preferiam manter suas intimidades ao ar livre. No meio do mato se preveniam de cheiros ruins e olhares indiscretos

Durante o sexo os casais não tiravam as roupas. A igreja regulava até os casados afirmando que o ato servia somente pra procriação e por isso não devia envolver carícias. Os católicos tinham dias e posições certas para se relacionar. A mulher por cima como dominante ou de costas como uma fera era estritamente proibido. Elas não deviam sentir prazer porque eram consideradas homens defeituosos. 

Em 1559 o clitóris feminino foi definido como um pênis mal formado. Dessa maneira as mulheres eram desprezadas ao máximo e serviam somente para gerar filhos. Os homens se atraíam por mulheres bem cobertas que mantinham seu pudor, embora não escondessem que durante os séculos XVIII e XIX a robustez e a morenice das indígenas fossem hipnotizantes. 

As damas decentes depilavam as partes íntimas, já as prostitutas zelavam por bastante pelos acreditando que eles eram atraentes. As mulheres negras recebiam palavrões durante as intimidades, já as brancas desfrutavam de alguns galanteios. As brancas serviam pra casar, as mulatas pra fazer sexo e as negras pra trabalhar. 

Os homens deviam ter prazer porque eram responsáveis pela procriação humana. Entre os séculos XVI e XVIII muitos eram submetidos a exames públicos de ereção. Mesmo contrariando os católicos os viajantes usufruíam de muita sensualidade nas terras que aportavam na Ásia e América aonde conheceram diversos afrodisíacos poderosos como o chocolate que despertava o prazer no século XVII.

A censura católica só fez aumentar substituindo o chocolate pelo café. Uma bebida quente que provocava o trabalho e o progresso. O amor erótico era tratado como uma doença desde o século XVI. As pessoas eram curadas até com sangrias porque acreditava-se que o sexo abreviava o tempo de vida e emburrecia os praticantes ao perderem muitos nutrientes nas secreções.

Secreções que só podiam ser feitas dentro do útero, fora deste local era considerado um pecado imperdoável. Falando assim até parece que os religiosos eram incorruptíveis, mas a história brasileira revela que a Reforma Católica demorou muito pra se instalar no país. Os casos sexuais de padres eram muito mais que comuns e ocorriam até nos confessionários.

As igrejas do século XVIII eram mal iluminadas e repletas de altares laterais que ofereciam um ótimo abrigo para práticas sexuais. O apagar das velas na quinta feira santa se transformava num grande entrelaçamento de corpos em busca de prazer. Afinal quem iria suspeitar deste local? 

Um século hipócrita

Até o século XIX os escândalos amorosos da família real eram disfarçados, mas com a entrada de Dom Pedro I no poder a situação mudou. Casos fora do casamento se tornaram corriqueiros e nada sigilosos. A sociedade reprimira o sexo, mas era absolutamente obsecada por ele. Adultérios de uma noite ou de anos a fio (concubinatos) viraram moda no Brasil.

Os viajantes que conheciam nossas terras apontavam os repugnantes vícios brasileiros. Denunciavam as traições afirmando que as amantes conhecidas como teúdas ou manteúdas eram moda. Lamentavam a situação das esposas que se casavam jovens demais e por isso acabavam definhando rapidamente. As pobres consortes ainda eram obrigadas a educar os filhos ilegítimos do marido.

Após o casamento as mulheres não podiam manter sua vaidade, deviam se vestir somente de preto e abandonar o uso de perfumes, roupas novas, penteados elaborados e fitas no cabelo. Sem permissão para sair de casa por volta dos trinta anos de idade já eram idosas sofrendo com a obesidade. Entretanto muitas moças não conseguiam casar-se numa terra de poucos homens.

Para essas jovens o destino podia ser generoso se aceitassem o posto de manteúda de um rico fazendeiro, banqueiro, comerciante, etc. Esses homens poderosos mantinham várias amantes desse tipo e elas eram respeitadas na sociedade quando mantinham a discrição necessária. Era uma maneira de subir na vida.

Publicamente somente as mulheres eram obrigadas a ser fiéis, mas as ricas sempre arranjavam amantes jovens para satisfazê-las secretamente, já as pobres optavam pelo divórcio. Resumindo, pular a cerca era mais que comum, e a culpa era de quem? Das pessoas negras e mulatas que provocavam o desejo carnal desviando os brancos da conduta fiel.

Na época a pena para adúlteros era a morte enquanto que aos amantes cabia o degredo. Entretanto, na prática, as pessoas nunca eram condenadas por suas aventuras sexuais. Tanto que até mesmo entre os religiosos era comum conceber filhos sem receber nenhum tipo de punição. Alguns jornais como A Regeneração da ilha de Florianópolis denunciavam essas situações luxuriosas.

Com a chegada de Dom Pedro II ao governo o Brasil foi invadido pelas novidades francesas. As novas tendências eram a dominação masculina representada pelos bigodes chamativos e a consequente fragilidade feminina sustentada pelos espartilhos, anquinhas, penteados suntuosos e palidez exagerada acompanhados de mãos, pés e nucas provocantes á mostra.

O culto a mulata faceira ganha força, mesmo sendo uma figura pobre. Os médicos começavam a alertar que o útero era capaz de dominar o cerébro criando verdadeiras loucas por sexo conhecidas como ninfomaníacas ou histéricas. Essas mulheres recebiam tratamento de loucura e tinham seus desejos acalmados por médicos para evitar futuras traições ao marido.

Os mesmos médicos souberam aproveitar seus conhecimentos eróticos para escrever livros para leitores homens. No fim do século XIX os "livros para ler com uma mão só" circulavam pelo país repletos de histórias e desenhos picantes que terminavam com a morte da mulher fogosa servindo como lição de moral. Podemos considerar esses livros como as primeiras revistar pornôs do Brasil.

A preocupação médica aumentava junto com a disseminação dos prostíbulos. Esses locais ficaram populares por receber estrangeiras, sobretudo francesas, repletas de sensualidade dispostas a ensinar as delícias sexuais aos moços virgens. Acreditava-se que as prostitutas mantinham a saúde de casamento, elas podiam ser refinadas (cocotas) ou pobretonas (polacas).

Os médicos pediam para os homens economizarem o esperma indicando no máximo três relações por semana para os jovens, uma a cada três semanas para os que somavam uns cinquenta anos de idade e nenhuma para os mais velhos. A masturbação era vigiada e punida severamente. A esterilidade era pregada como uma pesadelo. Tudo isso para manter a força do corpo.

De pouco adiantaram os apelos médicos. Tanto que os casos homossexuais aumentaram e os "frescos" eram vistos como doentes de espiríto que necessitavam de tratamento moral. A sífilis se alastrou pelo Brasil, o responsável era o homem e um dos tratamentos indicados era a relação sexual com mulatinhas virgens. Acreditavam que elas limpavam o sangue do homem infectado.

Primeiras rachaduras no muro da repressão

Até o século XX os calções e camisolas de dormir possuíam aberturas para o ato sexual, assim o casal  não precisava tirar a roupa na hora de dar continuidade á família. Entretanto o novo século chegou, a República instalada no fim do XIX trouxe muitas novidades que agilizaram o cotidiano: esportes, ginásios, teatros, danças, cinema, fotos, espelhos, exibição de corpos, entre outras coisas.

Com tantas mudanças as pessoas acabaram mudando também a sua maneira de pensar. Quando começou a Primeira Guerra Mundial por exemplo, as mulheres tiveram que trabalhar e precisavam de roupas confortáveis, por isso abandonaram os espartilhos e partiram pra cinta de borracha (recém descoberta). O metal usado nas armações dos vestidos seguiu pra produção de armas. Em 1913 o sutiã foi criado nos Estados Unidos da América.

E não foi só a roupa que mudou no universo feminino. A menstruação deixou de ser considerada uma doença e os paninhos usados para controlar o sangue foram deixados de lado graças a invenção de protetores de malha ou borracha. Aos poucos a sensualidade e a higiene viravam moda. Essa mulher moderna: magríssima, alegre, provocante e com cabelos curtos surgiu no teatro de revista por volta de 1920. Uma das precursoras no Brasil foi a inesquecível Dercy Gonçalves.

As tendências deixaram de vir de Paris. A moda agora vinha dos estúdios de Hollywood. As pessoas queriam ser como os atores dos filmes americanos: jovens e magros. Em 1908 foi lançado o primeiro filme pornô da história, mas possuir ou assistir um filme desse gênero se tornou crime sujeito a prisão. Em 1920 nos Estados Unidos da América foram criados quadrinhos com histórias pornôs. Quem eram os personagens? Pasme: Betty Boop, Mickey Mouse e Marinheiro Popeye.

A fotografia acabou gerando a pornografia no início do século XX em Paris. Já na Inglaterra os fotógrafos optavam por retratar as pessoas nuas em situações cotidianas como estender roupa no varal, era o naturismo tentando defender que o nu era natural e puro. Na capital, Rio de Janeiro, circulou entre 1900 e 1916 o jornal Rio Nu.

Era um verdadeiro sucesso entre os homens. A redação não possuía jornalistas porque era escrito por leitores. Continha piadas, cancões, poemas, caricaturas, anúncios de remédios, concursos de prostitutas e jogos de azar, tudo relacionado ao sexo para saciar desejos carnais que os maridos não podiam manter com suas esposas. Pela sociedade alguns médicos ousados começaram a sugerir o prazer simultâneo ao casal, era o super-matrimônio.

Em contra partida o governo tentava manter o pudor a todo custo. O presidente Vargas se uniu a Igreja para reforçar a necessidade do casamento. Os concubinatos viraram crime. As mulheres de família preservavam a virgindade para a noite de núpcias. Em 1930 a educação sexual se tornou uma necessidade para evitar doenças entre os homens e preparar as mulheres para a gravidez. As escolas possuíam salas aonde se verificava a higiene íntima dos estudantes.

Olhares indiscretos

Até o século XIX a Igreja não recriminava o aborto de fetos masculinos com até 40 dias e femininos com até 80 dias, a menos que fosse fruto de uma relação extra-conjugal. Os religiosos afirmavam que neles ainda não existia alma. Por outro lado o governo brasileiro via essa prática como um atraso social considerada crime desde 1890.

A primeira década do século XX manteve essas e outras contradições. O exagero de festas ritmadas exibiam mulheres provocantes, sobretudo no carnaval, mais conhecido como bacanal. Nessas ocasiões os desejos afloravam provocando repulsa nos conservadores. Mas aos poucos surgia um desejo ainda mais repugnante: o amor por meninos. Os pederastas (pedófilos) ganhavam espaço..

Pesquisas apontavam que quanto mais velho fosse o abusador, mais jovem era sua vítima. A medicina afirmava que a pedofilia era causada por embriaguez ou traumas passados. Só em 1915 o governo brasileiro sancionou uma lei contra o abuso de menores (jovens até 21 anos na época). Felizmente esses homens eram minoria, os bons pais de família começavam a entrar em alta.

Com o fim das guerras os homens largavam os duelos para se tornarem burgueses educados, trabalhadores e fortes. Esse novo modelo masculino devia ostentar cicatrizes de herói, praticar esportes e quem sabe até fisioculturismo. Eram os trabalhadores úteis ao país, um esteriótipo vindo de Hollywood. Do outro lado estavam os "almofadinhas", homossexuais que não construíam família para sustentar o Brasil.

O governo lhes tratavam como criminosos, anormais, bodes expiatórios durante batalhas. Eram alvo de aplicações de insulina, internações e cirurgias de troca de testículos numa tentativa de mudar sua orientação sexual. Entre as décadas de 1930 e 1960 esses jovens buscaram refúgio em pequenos apartamentos nas cidades movimentadas. Lá as "bonecas" podiam receber seus "bofes" em relativo segredo.

As mulheres, com o fim da 2ª Guerra Mundial, deviam voltar para sua casa onde cuidavam de suas famílias. Os jornais da época diziam como elas deviam se comportar. Precisavam ser ótimas mães e cozinheiras. Deviam manter a paciência, ser doce e meiga, tratando seu marido com compreensão e jeitinho. Entrar num carro com um homem só era permitido após o casamento.

O cinema espalhava o desejo por um carro, mas também pelas lambretas, beijos e carícias. Em 1950 o desquite se tornava comum mesmo que um segundo casamento fosse proibido. Aos poucos a sociedade começava a tolerar os casais que não viviam um casamento oficial. O prazer começou a ser vivido junto com o amor. E a igreja? Esta agia como se jovens do interior e idosos não tivessem pecados.

As transformações da intimidade

As décadas de 60 e 70 trouxeram uma revolução sexual, era o direito ao prazer. A higiene bucal trouxe o beijo a relação sexual. A chegada do anticoncepcional, do rock e do movimento hippie empurravam as barreiras sociais. As festas estudantis, as boates e os motéis se tornam uma rotina rondada de palavrões. A saúde e a beleza começavam a se democratizar ao mesmo tempo em que a cultura de massa era produzida pelas televisões trazidas pelo milagre econômico de 64.

Artistas começavam a se expressar livremente e por isso mesmo foram vítimas da repressão. As pornochanchadas (comédias picantes) ganhavam a cidade de São Paulo e contavam com artistas do nível de Vera Fischer e Antonio Fagundes. Acreditasse que o governo as tolerava porque acabavam distraindo o povo que deixava passar despercebidos os atos de repressão do Estado. Mas aos poucos os filmes brasileiros foram perdendo seu público para os pornôs explícitos vindas do exterior.

A novidade vinda da França era o topless, perseguido cruelmente. Nas praias de São Paulo e Rio de Janeiro os homens criticavam até mesmo as moças moderninhas que perdiam toda a sensualidade ao exibir o corpo nos grandes biquínis da década de 60. A mulher independente de meados de 70 trabalhava fora de casa sem sentir vergonha por isso, mas acabava se tornando alvo de  um marido enciumado. Ele cometia agressões e muitas vezes chegava ao suicídio sendo perdoado pela lei, pois estava defendendo sua honra.

Só em 1980 foram criadas as primeiras instituições voltadas a proteção das mulheres. As prostitutas começavam a lucrar em hotéis, em atendimentos a domicilio e até na beira das rodovias paulistas. Em 1987 organização um encontro para exigir seus direitos que até hoje não são atendidos. A face mais cruel da prostituição vem dessa época e ainda não tem solução: a venda de meninas pobres.

A pornografia infantil surgida nessa época e hoje ocupa o 3º lugar no ranking mundial. Perde somente para os Estados Unidos da América e Rússia. Um mercado que leva muitas crianças a sofrerem abuso sexual. O IBGE aponta que de cada 4 estupradores brasileiros, 3 são pais e 1 é padrasto da vítima.

Em 1975 veio a tona a primeira troca de sexo realizada no país. Ela havia sido realizada em 1871 e o médico acabou preso por um período a contra gosto de seu paciente. Só em 1997 esse tipo de alteração foi permitida e em 2008 passou a ser realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Um problema maior estava chegando para atormentar a saúde pública: a aids.

A doença chegou aqui por volta de 1980. Gays, drogados e artistas foram os culpados por essa calamidade. Por causa dela a abstinência, a monogamia e o corpo gorducho voltaram á moda. Só no ano de 2000 o povo conseguiu perceber que é possível viver com a doença, até então a pessoa contaminada estava designada a morte.

Desde 1980 o número de casamentos no país diminui, enquanto que o de divórcios aumenta sem parar. O Brasil está fadado ao fim das grandes famílias. Os homens estão apresentando crises de baixa estima. O individualismo caiu no gosto popular e esse narcisismo está construindo família de uma única pessoa. Uma realidade chocantemente rápida.

Para finalizar convido você a refletir sobre as alterações que os brasileiros sofreram em sua vida íntima nesses 500 anos de história. Leia a obra integralmente e formule sua opinião: como será nossa intimidade daqui a 20 anos? É um bom desafio pensar nisso não concorda? O livro vai lhe ajudar, além de ser uma leitura atrativa e leve. Confira.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

África ou Áfricas?

(Imagem do continente africano. Fonte desconhecida.)

O continente africano foi alvo de esquecimento proposital durante décadas. A chamada História Tradicional não percebia utilidade alguma em discursar sobre as terras ou personagens africanos. Tudo isso por considerar historicamente útil somente os acontecimentos e personalidades europeias. Felizmente o olhar historiográfico sofreu uma ampliação drástica no século XX com a criação da Escola dos Annales. Os fundadores da instituição Lucien Febvre e Marc Bloch foram responsáveis por trazer para o campo de estudo da História algumas novidades. A principal delas foi o interesse sobre a micro-história, ou seja, pelos pequenos fatos e personagens.

A História começou a dialogar com outras ciências, uma delas foi a Antropologia que revelou verdadeiras facetas sobre a África. Graças às pesquisas no solo africano foi possível descobrir que os ancestrais humanos mais antigos viveram naquela região e mesmo assim o grande continente continuou sendo visto com menosprezo pelo mundo afora, como ainda é nos dias de hoje. O preconceito é tamanho que muitos europeus defendem que o Egito pertence á Europa devido sua riqueza e prosperidade. Alguns historiadores afirmam que as terras africanas devem ser entendidas como duas partes completamente diferentes, a África Mediterrânica e a África Subsaariana.

Os historiadores adeptos dessa ideologia utilizam a geografia para justificar a divisão continental. Para eles o deserto do Saara provocou um afastamento físico entre as populações do norte e do sul que acabou resultando em cotidianos tão diversos a ponto de produzir dois contextos culturais completamente alheios. Dessa maneira seria impossível falar em uma África, pois a realidade e história são completamente diversas. Logo seria mais adequado separar as sociedades em África Mediterrânica (ao norte do Saara, em contato com os povos do Mediterrâneo) e África Subsaariana (ao sul do Saara, completamente subdividida em pequenas culturas).

Outros dois argumentos para justificar a existência das “duas Áfricas” são: a grande quantidade de cataratas ao longo do rio Nilo que inviabilizaram a navegação que poderia ter estreitado os laços entre o norte e o sul africano e também a presença da escrita somente no norte que comprovaria a superioridade de seus habitantes. Entretanto, o número de historiadores que discorda completamente sobre as “duas Áfricas” vem crescendo rapidamente na atualidade. Eles vêm defendendo a integridade da África por alguns motivos, entre eles o próprio Saara. Como?

Os defensores da África como um único continente alegam que o deserto saariano nem sempre foi tão seco e árido, logo, há milhares de anos atrás, o ser humano que ainda estava em evolução conseguia atravessá-lo sem grandes dificuldades. Outro argumento é de que as cataratas do rio Nilo dificultaram a navegação sim, porém nunca a tornou impossível, tanto que foram encontrados no norte objetos produzidos no sul, e vice e versa. Outra refutação é a de que as diferenças culturais entre o sul e o norte não evitaram seu contato, caso contrário, o norte também não poderia ter comercializado com o Mediterrâneo.

Seria inocência negar o fato de que o norte africano manteve uma ligação muito maior com os povos mediterrâneos do que com o sul africano. Entretanto defender essa cisão entre as duas partes africanas, para mim, é um grande exagero. Quem sabe seja até um belo golpe para se apropriar das riquezas incontestáveis da “África Mediterrânica”. Afinal, não é novidade alguma que desde os tempos do engenhoso Napoleão Bonaparte os artefatos históricos egípcios vêm sendo desviados para os museus europeus. Acha isso muito antigo? Então vamos falar sobre os Estados Unidos da América, outro campeão de exibicionismo museológico africano.

A África é uma só. Uma linda, plena e injustiçada terra. Um solo de abusos incontestáveis. O “berço da humanidade” merece muito mais respeito do que tem recebido até os dias de hoje. E sabem por que o povo não reconhece a grandiosidade daquela população de onde todos nós viemos? Porque a educação pública não permite tamanho senso crítico. Nossos jovens não deixam os bancos escolares lembrando de que os esqueletos encontrados comprovam que o ser humano veio de lá, surgiu lá, evoluiu lá, todos somos aquilo lá. É obvio, no fundo todos: somos um só, uma só raça, uma só evolução. E os pobres de espírito ainda enchem a boca pra criticar a raça negra. Mera ignorância, quanto lamento sinto pela existência de tais pessoas.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Oradores Barrigas-Verdes, a arte de falar bem


             
(Acervo pessoal: capa da obra)
(Acervo pessoal: contracapa autografada)

O livro Oradores Barrigas-Verdes: a arte de falar bem, foi redigido por dois autores renomados: João Alfredo Medeiros Vieira e Marcos Roberto Rosa. Publicada pela editora Ledix no ano de 2012, o objetivo da obra é comentar sobre a arte de falar bem (a oratória) aproveitando a oportunidade para apresentar os maiores oradores catarinenses. O texto foi dividido em duas partes, cada uma delas produzida por um dos autores. Vejamos as colocações de cada escritor:

João Alfredo Medeiros Vieira

Para iniciar o livro João Alfredo enfatiza que seria impossível apresentar todos os oradores importantes de Santa Catarina numa única obra, desta maneira deixa a sugestão de novos trabalhos sobre o assunto. O autor considera a Oratória algo inseparável da História, uma vez que nasce e se desenvolve da última, principalmente em tempos de crise durante discursos jurídicos e religiosos. Exemplo: foi durante a Revolução Francesa que surgiram alguns dos maiores oradores de todos os tempos.

Menciona o caso do surgimento das primeiras universidades durante a idade média lembrando o florescimento oratório nessa época, entretanto afirma que nenhum tipo de oratória é mais arrebatadora para ele do que a política. Acredita ser possível entender o meio e a época em que a pessoa estava inserida realizando uma análise de sua oratória. Porém alerta: nenhuma oratória, assim como a escrita, consegue alcançar êxito sem que exista o conhecimento pleno da língua em que será executada. 

Após essas colocações o autor começa a apresentar os oradores que elegeu para homenagear nesse livro.  Entre os homenageados figuram pessoas das mais variadas áreas profissionais: parlamentar, cívica, forense, acadêmica e sacra. João Alfredo inicia o texto sobre cada orador fornecendo uma breve biografia e segue expondo algum discursos que a pessoa em questão proferiu. Muitos trechos dos discursos compunham o próprio caderno de anotações do escritor.

Na sessão de oradores cívicos foi incluído um importante batistense, Dr. Willian Duarte da Silva. Advogado e empresário do ramo hoteleiro, Dr. Willian teve papel fundamental como orador durante o processo de emancipação do município de São João Batista. Logo, devemos muito á ele. Entretanto, apesar de tantos oradores competentes citados no livro o autor termina com um desabafo declarando que a oratória catarinense está em decadência, principalmente pelo emprego da tautologia.

A tautologia, para quem não conhece, é a repetição excessiva de idéias utilizando termos diferentes em cada colocação, um erro bastante comum. Ao falar dessa crise oratória no estado, João Alfredo deixa evidente sua capacidade crítica como leitor voraz, uma característica tão visível quanto sua religiosidade.

Marcos Roberto Rosa

O segundo autor do livro inicia sua colocação explicando que a Oratória (arte de falar bem) fazia parte da Retórica (apresentação de discursos) na Grécia e Roma antigas. Explica também que os latinos, por influência romana, utilizam até hoje uma oratória floreada, muito mais bonita do que repleta de conteúdo, um problema sério a ser superado por países como o Brasil.

Marcos Roberto alerta que um bom orador deve tomar muito cuidado durante seu discurso para manter seus gestos suaves, voz agradável e vibrante, postura firme, olhar sobre todos os presentes, limitar seu assunto, intercalar exemplos e imagens, usar palavras familiares aos ouvintes ao mesmo tempo em que trabalha seu semblante e respiração.

O autor afirma que qualquer pessoa com capacidade de fala pode se tornar um grande orador, só que para isso acontecer precisa estar disposto a exercitar e praticar sua memória, adaptabilidade, inspiração, entusiasmo, determinação, observação, expressividade, síntese, ritmo, voz, vocabulário, expressão corporal, naturalidade e, principalmente, seu conhecimento.

Continuando a obra o escritor comenta sobre a importância de Aristóteles para a Retórica ao introduzir nela a persuasão. Explica que um discurso pode persuadir os ouvintes de três maneiras: pelo exemplo do orador (Ethos), pelo despertar das emoções do público (Pathos) e pela comprovação das idéias expostas com argumentos convincentes (Logos).

Para finalizar Marcos Roberto apresenta um exemplo de discurso riquíssimo. O texto é de João Alfredo Medeiros Vieira e foi pronunciado durante a recepção de Gilberto Callado de Oliveira na Academia Catarinense de Letras no dia 17 de abril de 2008. A anexação deste discurso comprova a admiração que Marcos Roberto sente pelo colega que escreveu o livro com ele, João Alfredo.

Encerro aqui meu singelo resumo sobre o livro Oradores Barrigas-Verdes: a arte de falar bem. Peço desculpas aos autores por algum eventual erro. Tudo que escrevi foi pensando na maneira de divulgar ainda mais essa produção tão sábia. Aproveito para comunicar que gostaria de ter percebido uma interação mais rica entre os escritores.

Gostaria de agradecer ao Dr. Willian por ter me presenteado com essa obra tão rica que com certeza enobrecerá meu trabalho daqui pra frente, tanto como professora quanto como escritora. Muito obrigada!

Não posso finalizar sem antes indicar a leitura completa do livro á todos que desejam aperfeiçoar sua oratória e conhecer melhor o tema. Até mais!

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O queijo e os vermes

(Capa da obra disponível em: www.ibiubi.com.br)

O historiador Carlo Ginzburg estava pesquisando um outro assunto quando se deparou com uma figura bastante curiosa: Domenico Scandella, popularmente conhecido como Menochio. Esse homem foi investigado pelo Tribunal da Inquisição devido suas idéias excêntricas, idéias que conquistaram Ginzburg provocando nele o desejo de escrever uma obra somente sobre Domenico para criar a oportunidade de analisar sua mentalidade micro-histórica. Vejamos o que este personagem real possuía de tão especial:

Menochio nasceu em 1532. Morava em Friuli, uma localidade italiana bastante atrasada. Era casado e teve 11 filhos, dos quais quatro faleceram. Exerceu os trabalhos de pedreiro, marceneiro e carpinteiro, mas sua profissão era moleiro (dono de moinho). Possuía 2 moinhos e 2 campos para aluguel e usava a capa com capuz branco, traje dos moleiros. Ocupou o cargo de magistrado em 5 aldeias e administrador da paróquia local. Era letrado, talvez tenha frequentado a escola regular. Chegou a ser desaprovado por suas idéias, mas não odiado.

Que idéias tão chocantes um homem comum como este poderia possuir? Menochio foi denunciado á Inquisição em 28 de setembro de 1583 por causa de suas palavras ameaçadoras. Costumava blasfemar sobre os santos e Jesus Cristo, respeitava somente Deus. Em depoimento o pároco Odorico Vorai afirmou que Menochio não se confessava nem obedecia a hierarquia católica, isso prejudicou bastante o moleiro. O primeiro interrogatório aconteceu em 07 de fevereiro de 1584. Durante as perguntas Menochio admitiu questionar a virgindade de Maria, mas afirmou que não forçava ninguém a acreditar em suas idéias.

O homem era ousado pra sua época e formulou uma teoria chocante. Acreditava que o mundo havia surgido de uma grande massa composta por terra, ar, água e fogo em movimento. Dessa massa teriam vindo os anjos, assim como os vermes vinham do queijo. Sua fala chocava os religiosos que realizaram novos interrogatórios em 16 e 22 de fevereiro e também em 8 de março. No decorrer das conversas Menochio não renegava nada em suas idéias, mas pedia perdão prometendo seguir as regras católicas.

Em 28 de abril começou a falar sobre suas opiniões com os superiores católicos. Criticou o uso do Latim nos tribunais da Igreja uma vez que os pobres não compreendiam esse idioma. Afirmou que algumas leis da religião como os sacramentos não passavam de mercadorias. Já no dia 01 de maio num novo interrogatório ele afirmou que a Igreja Católica não deveria ter tanta pompa. Considerava os religiosos muito mais culpados pela pobreza do povo do que os próprios nobres. Dizia que a Igreja possuía terras demais e não podia ser considerada superior ao restante da sociedade porque todos possuem Deus dentro de si.

Tantas críticas aos católicos levou a suspeita de que fosse anabatista já que negava os sacramentos, as imagens sacras, o Cristo divino, o batismo, entre outros. Por outro lado Menochio valorizava práticas católicas como a missa, a eucaristia e a confissão. Alguns registros apontam que esteve em contato com o luterismo também. Logo, é impossível descobrir qual das três religiões realmente seguia, se é que seguia alguma verdadeiramente porque não aceitava idéias passivamente. Tudo indica que suas idéias eram próprias, apesar de indícios que tenha sido influenciado por Nicola de Melchiori (pintor da Porcia).

No inicio de seu processo Menochio era cauteloso dizendo ter sido tentado pelo demônio para falar tais coisas, mas tempos depois afirmava ter uma cabeça sutil que formou idéias após muitas leituras. A lista do que teria lido se perdeu, mas é fato que realizou muitos empréstimos na vila provando a existência de mais leitores do que o previsto. Era uma grande devorador de obras, sobretudo das escritas em língua vulgar. Sua maneira de ler era muito particular, lia de forma parcial e costumava ocultar algumas partes enquanto exaltava outras para provar as idéias que formulou.

Menochio não acreditava na divindade de Cristo nem em sua crucificação. Quanto a Deus pensava ser impossível que criasse algo sem matéria disponível, assim como o queijo. Para ele Deus era um pai amoroso, porém distante; era uma autoridade que não trabalhava, dava ordens, assim quem teria criado o mundo seria o Espírito Santo.  Dizia que todos os seres teriam vindo do caos entre os 4 elementos, primeiro vieram os mais perfeitos: os anjos, depois a santíssima majestade: Deus, e por último teriam surgido o Espírito Santo e a alma.

Para Menochio os homens tinham 7 almas (intelecto, memória, vontade, pensamento, crença, fé e esperança) que morriam juntamente com o corpo ( terra, ar, água e fogo). Também acreditava que as pessoas possuíssem dois espíritos, um bom (que retornava para Deus) e outro ruim (que desaparecia). Dessa maneira pensava em 2 mortes diferentes, a corporal e a espiritual. Enquanto explicava tais idéias ia viajando de texto em texto que lera. Sua vontade era conversar sobre esses fatos com homens importantes como reis e o próprio papa, mas tudo o que conseguira foi o diálogo com os padres da Inquisição.

Falava que o paraíso era uma grande festa, mas que o inferno não passava de uma criação dos padres. Considerava todo tipo de água benta desde que a pessoa soubesse usar as palavras certas. Tolerava cristãos, turcos, judeus e até heréticos porque para ele todos eram filhos de Deus. Desejava um mundo novo com uma nova sociedade formada lentamente. Ao que tudo indica conseguiu unir alguns ignorantes e sábios contra a hierarquia católica, embora não existam provas de seu contato com os sábios. Os inquisidores realmente não sabiam o que fazer com uma figura tão assustadoramente determinada e  crítica.

Os interrogatórios terminaram em 12 de maio. O processo já era cinco vezes maior que o normal. Cinco dias depois Menochio desistiu de um advogado e entregou uma carta pedindo desculpas aos católicos afirmando ter sido tomado por um falso espírito. No mesmo dia os juízes o condenaram por heresia. Sua pena era negar publicamente todas as suas idéias, cumprir várias penitências, vestir para sempre um manto com uma cruz e passar o resto da vida preso ás custas de seus filhos. Ele cumpriu todo o seu castigo até o dia 18 de janeiro de 1586 quando pediu perdão novamente e foi atendido com algumas condições.

Duas dessas condições eram a de usar o manto todos os dias e só sair da cidade para trabalhar. Em 1590 retornou ao cargo de administrador da Igreja de Montereale. Entretanto, em 28 de outubro de 1598 a Inquisição começou a julgá-lo novamente. Após alguns interrogatórios puderam perceber que ele vinha mantendo suas idéias somente para si e decidiram arquivar o processo. Porém, alguns meses depois, as idéias de Menochio haviam saído de sua aldeia e circulavam de boca em boca em outras localidades, assim ele foi preso novamente em junho de 1599.

Menochio foi condenado á tortura, mas revelou somente um nome com quem havia conversado. Ele previa sua morte e chegou a clamar por ela. Em 1601, provavelmente, foi morto por ordem dos mais altos escalões da Igreja Católica. 

A obra é interessante por apontar que Menochio se sentia extremamente sozinho por não ter com quem compartilhar suas idéias, pois ao que tudo indica não fazia isso nem com sua própria família. O autor do livro enfatiza a mentalidade desse homem comum analisando principalmente sua maneira particular de ler, sua curiosidade insaciável, sua mania de pensar e recriar além de sua vontade de falar com os sábios. Dessa maneira Ginzburg produziu um rico trabalho acerca da micro história, da subjetividade do personagem, ou seja, deixou de lado os grandes heróis e se interessou por uma pessoa comum observando como ela também pode ser interessante e, por que não dizer, até mesmo importante.
Deixo a dica dessa leitura louvável e aguardo novos comentários sobre a obra. Até mais.