terça-feira, 28 de junho de 2011

D. João VI, o peculiar


Fonte: 
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   No dia treze de maio de mil setecentos e sessenta e sete nasce um celebre português que alteraria os padrões políticos de sua descendência, superaria as expectativas e causaria alvoroço entre as monarquias ao desembarcar em sua colônia americana, seu nome era João Maria José Francisco Xavier de Paula Luiz Antonio Domingos Rafael de Bragança, popularmente conhecido como Dom João VI; o primeiro rei europeu da história a colocar os pés em suas dependências além mar e o único de sua época que ousou enganar o maior gênio militar de todos os tempos, o estrategista Napoleão Bonaparte.
   Este feito transmitia a ideia de um monarca corajoso, mas ao analisar sua biografia percebemos que esta impressão é um tanto errônea. Nascido em berço aristocrático, o simplório João não foi educado para assumir o trono lusitano uma vez que era o segundo filho de Dom Pedro III e Dona Maria I, assim estava automaticamente fora da linha de sucessão real que seguia a tradição de repassar a coroa ao primeiro dos filhos homens. Porem, em 1788, seu irmão primogênito José, acaba falecendo vitima de varíola, e anos mais tarde, em 1792 é constatada a doença mental de sua mãe e devido a essas circunstancias nosso personagem chega ao poder aos 25 anos de idade, ainda que provisoriamente.
   Em suas primeiras ações governamentais o desajeitado João não consegue encobrir uma de suas principais características, a incapacidade nata de tomar qualquer decisão por conta própria. Logo que assume seu cargo elege três homens de sua total confiança para assessorá-lo nas decisões, esses políticos eram Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Antônio de Araújo de Azevedo e Thomaz Antonio de Villanova Portugal, respectivamente conhecidos como os condes de Linhares, da Barca e da Palma. Estes três assessores eram membros do Conselho de Estado português, desfrutavam de uma relação intima com o príncipe e tiveram grande parte do sucesso do governo joanino creditada a eles. Laurentino Gomes (2007, p. ) salienta:

Os ministros-escudeiros de dom João formavam uma espécie de três mosqueteiros da política portuguesa. Essa trinca de notáveis, provavelmente, não desempenharia tão bem seu papel se servissem a outro monarca da Europa. O príncipe regente, apesar de indeciso e supersticioso, tinha sagacidade para ouvir conselheiros, até por causa de sua índole relutante. Mas, além do mérito de considerar outras opiniões, a história tem de lhe creditar a capacidade de saber escolher seus auxiliares.

   Enquanto que no Conselho Dom João contava com o forte apoio dessa tríplice aliança, por outro lado, no âmbito domestico conviveu com as maiores ameaças a sua coroa, sua traiçoeira esposa Carlota Joaquina aliada a seu sétimo filho Dom Miguel Maria do Patrocínio que tentaram diversos golpes contra o monarca. A insistência da dupla é digna de nota em praticamente todos os estudos biográficos da família real. No caso de sua conjugue as desavenças são previsíveis, afinal a relação entre eles foi firmada por uma procuração entre suas famílias quando ambos eram apenas crianças, o jovem João somava dezessete anos de idade e a pequena infanta apenas dez. Se conheceram um mês após o casório e consumaram-no seis anos mais tarde.
   Por pertencerem a casas reais distintas foi bastante complicado dissimular as querelas do jovem casal por muito tempo, passados apenas dois meses do enlace a princesa mordeu a orelha de João um pouco antes de lhe atirar um castiçal na cabeça. Suspeita-se que nem todos os nove filhos da relação sejam realmente descentes de João, entretanto não há provas das traições da rainha. A infidelidade nunca comprovada de Carlota é debatida freqüentemente, já as puladas de cerca do rei, no entanto, não são discutidas com tanto fervor no meio acadêmico até porque foram poucos os historiadores que se arriscaram a adentrar sua intimidade. O fato é que o grande amor de sua vida não foi nem de longe sua esposa espanhola, mas sim uma das damas de companhia dela:

Casou-se por obrigação com Carlota Joaquina, com quem teve nove filhos e viveu pouco tempo sob o mesmo teto. Seu único caso de amor verdadeiro entrou para a história como uma tragédia obscura. Aos 25 anos, morando em Portugal e já casado, D. João teria se apaixonado por Eugênia José de Menezes, dama de honra da própria princesa Carlota. (GOMES, 2007, p. 171).

   O adjetivo de tragédia obscura não foi empregado pelo autor com poucas evidencias. Essa titulação se deve ao fim do relacionamento no ano de 1803 quando Eugênia, oficialmente solteira, aparece grávida. As suspeitas caem sobre o monarca que opta por enviar sua amada para a Espanha com a ajuda de seu médico João Francisco de Oliveira que arrisca sua reputação assumindo o filho do casal, a partir de então, o médico retorna a sua verdadeira família, deixando Eugenia sobre a proteção de conventos, aonde viveria o resto de sua vida sendo sustentada pela coroa portuguesa. Sua vida amorosa medíocre rendeu especulações de homossexualismo. A suspeita seria de encontros casuais com seu camareiro Francisco Rufino de Souza Lobato.
   Há poucas evidencias desse caso e uma única testemunha o que pode indicar uma simples intriga; mas isso não era comum com a simpática figura de Dom João. O rei era muito querido entre a sociedade; bondoso, era adepto fiel do ritual do beija mão. Sua simplicidade era bastante evidente, em certos aspectos chegava ao extremo, como no caso de seu traje casual, usado todos os dias era remendado sobre seu próprio corpo enquanto dormia a cesta. Um tanto preguiçoso, de fato, costumava bocejar durante as cerimônias oficiais, não gostava de andar nem cavalgar. Entre seus estranhos costumes o de carregar pedaços de frango fritos no bolso do casaco é o que mais se destaca, seu gosto pela ave era tanto que os agentes palacianos tinham prioridade na hora da compra.
   Dom João sempre se referia a si mesmo em terceira pessoa pelo titulo de ‘Sua majestade’. Seguia diariamente a mesma rotina, adorava musica sacra e não se permitia faltar a nenhuma das missas do ano. Entre tantos afazeres políticos seus momentos de lazer eram breves, mas conseguia sair todos os dias ao anoitecer para passear de carruagem, ocasionalmente ele mesmo a conduzia. Alguns vassalos o escoltavam pra cuidar de seus pertences, sempre que possível suas filhas caçulas o acompanhavam e seu camarista o seguia para ajudar com as vestes quando as necessidades fisiológicas o afligissem. Este momento de ir ao banheiro era o mais pitoresco, pois o monarca possuía um sanitário móvel que usava sem cerimônia na frente de seus acompanhantes.
   Sabemos que nossa majestade convivia com hemorróidas, depressão, ansiedade, e também diabetes, por causa desta ultima ao sofrer um ferimento na perna seu medico indicou a água do mar para auxiliar na cicatrização, este é o único registro de banho real durante sua estada no Brasil, nada menos do que treze anos; ainda assim mandou construir uma caixa com perfurações que garantia que nada alem de água chegaria perto de seu corpo, pois tinha muito medo de crustáceos, medo maior só mesmo o pânico que sentia durante as trovoadas quando se trancafiava em seus aposentos compenetrado em orações. Por suas atitudes tão peculiares é frequentemente depreciado nos estudos históricos, recebendo os títulos de covarde e melancólico.
   Sua silhueta não foge a criticas, o rosto amarelado, a estatura baixa, o corpo gorducho e os lábios grossos pendentes são evidenciados em suas caricaturas enfatizando sua face bizarra. Alguns historiadores chegam ao extremo a ponto de afirmar que de nobre mesmo Dom João só possuía as pequenas e delicadas mãos. Críticas a parte é preciso reconhecer que ele combinou bondade, inteligência, senso prático, sagacidade, precação, afabilidade, pertinência e insinuação. Foi essa sabia composição que lhe permitiu embarcar no porto de Lisboa com sua corte de aproximadamente doze mil pessoas rumo às possessões brasileiras as sete da manha do dia 29 de novembro de 1807:

Em 1807, o imperador francês era o senhor absoluto da Europa. Seus exércitos haviam colocado de joelhos todos os reis e rainhas do continente, numa sucessão de vitórias surpreendentes e brilhantes. Só não haviam conseguido subjugar a Inglaterra. [...] Napoleão reagiu decretando o bloqueio continental, medida que previa fechamento dos portos europeus ao comércio de produtos britânicos. Suas ordens foram imediatamente obedecidas por todos os países, com uma única exceção: o pequeno e desprotegido Portugal. (GOMES, 2007, p. 33).

   Dom João manteve o comércio com a Inglaterra desrespeitando a ordem de Napoleão, ainda assim enganou o general até o dia em que partiu para o Brasil. No dia 24 de novembro percebeu que Bonaparte não faria acordo algum e começou a planejar sua viagem. Havia indícios de que o exercito português possuía condições de vencer as tropas francesas, mas o príncipe regente preferiu não arriscar e ao invés de se entregar ao general francês como fizeram vários monarcas da época ele encontrou uma terceira alternativa: partir para terras americanas e governar seu reino a partir dos trópicos, bem longe do alcance e pretensões napoleônicas. Essa atitude serviu de modelo para outros reis como o espanhol Carlo IV.
   Os historiadores discutem qual o termo mais adequado para designar essa viagem, muitos optam por chamá-la de fuga, outros de translado, transferência ou retirada. Também há controvérsias a respeito do momento de embarque, há somente uma certeza, a de que não houve discurso oficial, D. João espalhou um decreto pelas ruas de Lisboa explicando as razoes de sua partida. A família real navegou escoltada pelos modernos navios britânicos e foi dividida em três antigas naus portuguesas, desta forma caso ocorresse uma tragédia a possibilidade de algum membro de sangue azul sobreviver era maior. No dia 17 de janeiro de 1808 duas naus chegam ao Rio de Janeiro, já em 22 do mesmo mês a embarcação do príncipe avista Salvador.
   No dia 23 de janeiro de 1808 ocorre um marco na história mundial. Pela primeira vez um monarca coloca os pés em uma de suas colônias, era a chegada de D. João VI a Salvador. Essa escala no porto baiano é contraditória, pode ter ocorrido devido a uma tempestade que alterara o rumo da navegação ou por uma decisão do príncipe, que neste caso seria uma sábia decisão uma vez que era preciso amenizar os ânimos da cidade que perdera o titulo de capital do país para o Rio de Janeiro. Salvador era fundamental ao reino, economicamente falando, no entanto seu porto era muito mais vulnerável a um ataque francês. D. João passa um mês na cidade baiana passeando, festejando, mas também tomando decisões que mudariam o destino do Brasil:

No dia 28 de janeiro, apenas uma semana depois de aportar em Salvador [...], D. João foi ao Senado da Câmara assinar seu mais famoso ato em território brasileiro: a carta régia de abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas. [...]. Com Portugal e o porto de Lisboa ocupados pelos franceses, o comércio do reino estava virtualmente paralisado. Abrir os portos do Brasil era, portanto, uma decisão óbvia. Alem disso, a liberação do comercio internacional na colônia era uma divida que D. João tinha com a Inglaterra. Foi o preço que pagou pela proteção contra Napoleão. [...] Ainda em Salvador, D. João aprovou a criação da primeira escola de Medicina do Brasil e os estatutos da primeira companhia de seguros, batizada Boa Fé. Também deu licença para a construção de uma fábrica de vidro e outra de pólvora, autorizou o governador a estabelecer a cultura e a moagem do trigo, mandou abrir estradas e encomendou um plano de defesa e fortificação da Bahia, [...]. (GOMES, 2007, p. 116 – 118).

   A criação da escola de Medicina, por exemplo, era essencial, pois até este momento os ofícios de cirurgião e dentista eram executados por barbeiros. Peculiaridade de um país sem qualquer resquício de sofisticação, quadro que D. João consegue alterar aos poucos entre diversas decisões como a fundação de instituições culturais ao nível do Museu Real, Imprensa Régia, Real Horto, Biblioteca Real, além da Corporação de Armas. Para assumir definitivamente suas funções ele embarca rumo à cidade maravilhosa em 26 de fevereiro de 1808 desembarcando no dia 08 de março do referido ano. Para abrigar os portugueses muita gente foi despejada. O Palácio dos Vice Reis que seria sede oficial do governo foi doado ao príncipe. Toda a cidade sofreu alterações:

A chegada da família real produziu uma revolução no Rio de Janeiro. O saneamento, a saúde, a arquitetura, a cultura, as artes, os costumes, tudo mudou para melhor – pelo menos para a elite branca que freqüentava a vida na corte. Entre 1808 e 1822 a área da cidade triplicou com a criação de novos bairros e freguesias. (GOMES, 2007, p. 166).

   D. João não mediu esforços em sua função de tornar o país mais agradável segundo os critérios europeus. Até os morros da cidade carioca ele mandou suprimir para melhorar a circulação de ar. Mas seus gastos eram elevados e por isso foi necessário cobrar altos impostos dos cidadãos e contar com o apoio dos ricos fazendeiros, no ultimo caso distribuiu honrarias em troca de financiamento, assim criou uma nobreza titulada sem qualquer tradição familiar e/ou hábitos nobres. Em oito anos no Brasil D. João outorgou mais títulos de nobreza do que haviam sido concedidos em trezentos anos em Portugal somando 254 nomeações, isto para sustentar a pompa real, sobretudo durante suas festas e comemorações.
   Em 10 de março de 1808 foi organizado seu novo gabinete, era o primeiro ministério do Brasil que devia criar um país a partir do nada. Uma missão ousada que obteve resultados bastante satisfatórios. O príncipe regente é lembrado pelo fato de conseguir estabelecer esse país com dimensões continentais; ele criou o império nos trópicos com o qual sonhara e para isso investiu nos setores da educação e de infra estrutura: “no Brasil não havia uma só faculdade. D. João mudou isso ao criar uma escola superior de Medicina, outra de técnicas agrícolas, um laboratório de estudos e analises químicas e a Academia Real Militar [...] de Engenharia Civil e Mineração.” (GOMES, 2007, p. 217).
   D. João era amante das ciências e das artes; seu apreço pelos livros o fez encomendar o transporte de sua Real Biblioteca esquecida em Lisboa durante o embarque e buscar em Londres duas obras que havia emprestado a um amigo. Seu habito organizado levou a nomeação de um “agente civilizador”, cargo com diversas responsabilidades destinadas a sofisticar a população que foi reservado ao advogado Paulo Fernandes Viana que executou trabalhos interessantes como substituir a madeira de todas as janelas cariocas por vidraças. Em 1816 quando o príncipe foi nomeado rei encomendou a Missão Francesa com diversos artistas famosos, entre eles Debret, para embelezar as comemorações do dia da coroação ocorrida dois anos mais tarde.
   Foi justamente por se preocupar demais com o Brasil que D. João evitava a publicação de viajantes sobre o país. Portugal que estava livre dos franceses desde 1810 começa a se sentir menosprezada pelo monarca enquanto que os brasileiros alimentam o sonho de se tornar independente das vontades lusitanas. Assim, ao mudar nosso país ele o perdeu. Foi contra a sua vontade que embarcou rumo a Lisboa no dia 26 de abril de 1821 acompanhado por somente 4000 pessoas das que vieram com ele. Após 13 anos de governo brasileiro seu retorno a Europa foi triste, mas inevitável. Só assim conseguiria manter o controle sobre os dois países: Portugal sobre seu julgo e o Brasil sobre os cuidados de seu filho D. Pedro I. Sua decisão surpreendeu a todos.
   O rei chegou ao porto português em 03 de março de 1821, foi humilhado ainda a bordo, recebido com desprezo e obrigado a jurar uma Nova Constituição. Deparou-se com uma realidade infeliz: era necessário manter-se afastado do país que aprendera a amar: o jovem Brasil, em prol de defender o futuro do mesmo. Assim o príncipe que anos atrás havia sido enganado com um falso diamante se apresentava muito mais sábio e precavido. E apesar das tentativas homicidas de seu filho Miguel, D. João veio a falecer somente em 10 de março de 1826 entre forte náusea e acessos de vomito. A verdadeira causa de sua morte ainda é desconhecida, contudo existe uma alta probabilidade de envenenamento, nesse caso a suspeita recaiu sobre sua perversa esposa Carlota.